A favela venceu? |
A favela venceu? |
O senso comum e a
mentalidade do povo brasileiro são dominados pela ideologia do livre mercado.
A sociedade civil de
nosso país, que foi bombardeada por anos de propaganda e doutrinação feitas,
principalmente, através da grande mídia, é refém do discurso neoliberal de
Estado mínimo, que foi imposto de forma semelhante ao totalitarismo desde
meados do século XX.
Esta ideologia
triunfou depois de ter sido exaustivamente repetida, e acabou penetrando no
coração do povo, que, em sua maioria, passou a defendê-la acriticamente. É
assim que se consuma parte da autoescravização da classe trabalhadora
brasileira e mundial.
A grande questão é:
há como desmascará-la e vencê-la? O povo consegue abrir mão dela?
A “esquerda” não soube ou não quis responder a estas perguntas, em
parte, porque teme enfrentar a consciência utilitária e conservadora de grande
parte do povo e de si própria.
I - No que consiste a ideologia de livre mercado?
A televisão, a grande
mídia, as universidades e as escolas atuais nos doutrinam através da ideia de
que vivemos em uma economia de “livre mercado”; que democracia é sinônimo de
capitalismo e “liberdade de mercado” é o mesmo que liberdade individual.
O egoísmo
individualista é visto como a fonte geradora de riqueza, dando as diretrizes “éticas”
para a sociedade e para o caráter. O senso comum chama ser rico e ter um
emprego de “ser alguém na vida”. Ou seja, “somos alguém na vida” se temos
dinheiro para consumir e enriquecer. Liberdade é confundida com posses.
O discurso neoliberal
esconde seu totalitarismo quando ataca e condena qualquer coisa que pense
diferente, transformando-o numa “verdade universal”, já que ele necessita de
uma padronização para funcionar. No entanto, o “livre mercado” não passa de uma
forma de organização econômica que reflete os monopólios e os cartéis que
controlam e definem os preços do mercado na época imperialista.
Se vende a ideia de
que no capitalismo o livre mercado é soberano e justo, não sofrendo influência
alguma dos multimilionários, bancos e mega empresas, possibilitando o suposto
enriquecimento de qualquer pessoa. Não é muito difícil perceber que trata-se de
uma trapaça, embora o povo pareça querer acreditar nesse engodo justamente
porque, em seu íntimo, almeja ser rico e poderoso como eles.
II - As consequências da ideologia do livre mercado para a economia
brasileira
Numa economia
periférica que não superou plenamente as heranças coloniais, como é a
brasileira, a ideologia do livre mercado serve como uma forma de escravidão
mental que mantém o discurso preso num eterno ciclo vicioso de exploração e
submissão internacional. Isso significa que o imperialismo em suas distintas
faces não precisa invadir militarmente o nosso país: os atuais ideólogos,
jornalistas, escritores e “militantes” nacionais são os próprios cavalos de
Tróia que fazem o trabalho de criar os grilhões invisíveis, que se transformam
em dogmas econômicos e morais, vociferados todos os dias nos telejornais, nas
universidades, nos canais monetizados do youtube e na agenda econômica oficial
que torna o nosso país refém acrítico desta exploração e sabotagem sem fim.
É a partir da
ideologia do livre mercado que os EUA e os países europeus controlam o Brasil e
liquidam, na prática, a sua soberania.
Qualquer ação
internacional do Brasil ou de outros países é enquadrada, julgada e justificada
a partir dessa ideologia, que nos deixa dependente dos interesses da cúpula do
mercado mundial, sediada nos EUA e na Europa.
A mentalidade de
vira-lata, de que o país “não dá certo” e que não se pode colocar na competição
com outros países do mundo se deve, sobretudo, à ideologia de “livre mercado”,
que passa a falsa impressão de que não conseguimos nos disciplinar e nos
adequar às exigências da meritocracia e do mercado. Portanto, superar o
espírito de vira-lata e de desapreço pelo próprio país pressupõe superar a
ideologia de livre mercado.
III - A ideologia do livre mercado impõe os dogmas de “Estado mínimo”
O “Estado mínimo” é
um dogma criado pela escola de Chicago e imposto pelo Consenso de
Washington aos governos latino-americanos, sendo repetido como um mantra por
economistas mercenários e ecoado 24h na grande mídia.
O Estado nacional e a
sua intervenção sobre a economia é a única força capaz de se contrapor ao poder
do imperialismo internacional e a sua aliada no país, a “elite do atraso”.
Assim, a ideologia do “livre mercado” e, em específico, os seus dogmas de
“Estado mínimo”, neutralizam politicamente qualquer país sem necessitar de uma
intervenção militar direta.
Além disso, a lógica
de “Estado mínimo” reforça o discurso de que o Brasil “só é viável se receber
investimentos estrangeiros”, não cabendo ao Estado nenhuma função econômica
além de segurança pública (também não cumprida integralmente) e de fiador do
lucro privado — sobretudo das multinacionais. No entanto, os verdadeiros
investimentos para o desenvolvimento nacional dependem do Estado (tal como nos
comprova a experiência varguista e chinesa, por exemplo), dentre outras coisas,
para criar as condições em que o empresariado nacional — sobretudo o paulista —
passe a reinvestir seus capitais no nosso país, fazendo a roda começar a girar
a favor do mercado interno (este é o único e real empreendedorismo que pode
beneficiar o povo brasileiro).
Já nos países do
Oriente Médio e da Ásia, o discurso passa a ser o de “democracia” para
substituir os “governos autoritários”, “terroristas” ou do “eixo do mal”. A
democracia liberal é o instrumento político no qual a ideologia do “livre
mercado” opera, supostamente para auxiliar populações massacradas por governos
autoritários, escondendo, por sua vez, a auto escravização resultante da
aplicação da própria ideologia.
IV - A iniciativa privada como um “santo remédio”
Segundo a ideologia
do livre mercado, os governos e o Estado supostamente “atrapalhariam” a
iniciativa privada — cobrando impostos, fiscalizando e definindo leis, regras,
regulamentações econômicas, etc. Em contrapartida, a iniciativa privada é vista
como um poço de virtudes e uma fonte de soluções.
Não é verdade que o
bem esteja só de um lado e todo o mal no outro. A ideologia do livre mercado
serve perfeitamente para disfarçar o fato de que a iniciativa privada quer
deixar o Estado exclusivamente como fiador do lucro privado às custas dos
investimentos sociais, sempre taxados de “gastanças desnecessárias” ou como
ameaças de “quebra do país”.
Enquanto a iniciativa
privada enriquece quase sempre uma pequena elite utilizando-se do Estado e dos
governos como meios de acumulação e combatendo qualquer forma de regulamentação
e cobrança de impostos que sirva para reverter a criação de riqueza em benefícios
sociais, os governos e a política são vistos erroneamente como os únicos focos
de corrupção e os únicos inimigos.
A ideologia do livre
mercado esconde, portanto, que a riqueza da iniciativa privada se faz às custas
da garantia do dinheiro público para isenções de impostos e de investimentos
que geralmente reproduzem e garantem a acumulação de capital para poucos às
custas da maioria.
O fato do governo
brasileiro pagar mais de 50% do que arrecada em juros e amortizações da dívida
pública para os bancos e o sistema financeiro, deixando uma pequena gorjeta
para a corrupção em distintos níveis, não deve ser justificativa para não se
pagar impostos, mas reforça a tese principal de que a iniciativa privada, o
agronegócio, o sistema financeiro e o empresariado nacional e internacional
utilizam os recursos públicos como garantia econômica para si próprios às
custas do desenvolvimento do país. Eles maquiam, disfarçam e escondem tudo isso
atrás da ideologia do livre mercado, que serve perfeitamente para estes fins.
Em síntese, a
ideologia do livre mercado sustenta a ideia de que só há desenvolvimento a
partir da iniciativa privada e de privatizações. Além disso, ela defende que
não há alternativa à economia de mercado nos moldes neoliberais. Os jornais e a
mídia fazem a lavagem cerebral, os ricos enriquecem ainda mais, o povo
empobrece ainda mais, repete o discurso e… aplaude!
V - A ideologia do livre mercado e os apetites e taras individuais
A maioria do povo
pobre simpatiza com a ideologia de livre mercado porque comunga com ela certas
noções e valores de acumulação de riquezas, que se relacionam, de uma forma ou
de outra, com os códigos morais tradicionais e expectativas de vida
consumistas.
Por exemplo: o homem como “chefe de família”, já que não pode mandar na
arbitrariedade dos governos, dos bancos, da polícia ou local de trabalho, quer
compensar em casa, nas mulheres e nos filhos, agredindo-os se necessário for.
Ou seja, quer sentir-se importante e poderoso em algum nível como compensação
psíquica.
Os ideólogos, jornalistas e escritores que propagam a ideologia do livre
mercado usam e abusam da ilusão de que o capitalismo seria autenticamente
democrático e respeitaria as “liberdades individuais”, enquanto o socialismo e
qualquer oposição ao “livre mercado” seriam uma afronta à própria liberdade
humana. Confundem propositalmente “liberdades individuais” com “fazer o que se
quiser”, mesmo que não se tenha dinheiro; e misturam tudo isso com a defesa de
“deus, pátria e a família tradicional” que, muitas vezes, se assenta no
moralismo mais retrógrado e numa completa confusão de conceitos econômicos que,
ao fim e ao cabo, defendem apenas a riqueza e a propriedade dos
multibilionários.
O fato, contudo, é que a “liberdade” do liberalismo e do “livre mercado”
é muito relativa e, na prática, enganosa. Talvez esta ideologia tenha vencido
no final do século XX precisamente porque ofereceu a ordem social aparentemente
menos intrusiva nos desvios e taras individuais. Além disso, mostrou-se como o
instrumento mais conciliador e tolerante de repressão diurna do inconsciente
noturno, o que dá uma aparência de mais “liberdade”, quando na realidade o
próprio capitalismo e o seu “livre mercado” se beneficiam dos vícios e taras
das profundezas obscuras de cada um de nós (o que inclui o egoísmo mais
rasteiro e as perversões não declaráveis). Reforça também a luta de todos
contra todos, gerando o caos sádico que é aproveitado pelas elites para dividir
e reinar.
Enfrentar a ideologia de livre mercado pressupõe, portanto, encarar esta
confusão proposital que foi feita pelos ideólogos neoliberais fazendo uma
mistureba louca de moralismos e economia, mesmo sabendo que para a psicologia
de massas o discurso racional sequer arranhe as convicções egotistas,
geralmente irracionais, de cada pessoa. Significa, muitas vezes, comprar uma
briga com os desvios do povo e, consequentemente, com bases sociais, sindicais
e eleitorais — algo que é temido à morte pelas esquerdas.
O regime militar sempre foi uma forma preferencial de governo ao longo
da História para disciplinar a espécie humana ao trabalho forçado. O
liberalismo, com sua ideologia de livre mercado, conseguiu transformar uma
violência física — o regime militar — numa violência simbólica feita, na
maioria das vezes, imperceptivelmente, através de uma permanente ameaça
disfarçada com o desconto salarial, as dívidas, a demissão, o desemprego, a
deportação, etc. Esta “força branda”, que é, na realidade, uma violência
simbólica, dá uma roupagem de respeito à “democracia” e “liberdade individual”,
quando se trata de uma forma nem tão sutil de censura.
A coerção liberal, portanto, é feita através de mecanismos econômicos,
quase sempre querendo se passar por uma consequência de alguma “insuficiência
individual”; se trataria, portanto, de alguma “escolha” ou “má conduta pessoal”. É como na lógica meritocrática: o perseguido e censurado sente-se
como corretamente punido por sofrer a censura e a perseguição.
Esta forma sutil de censura dá a impressão de que há democracia em
comparação com as “terríveis ditaduras comunistas” e “estatais”, que lhe
perseguem, espionam e censuram com as suas polícias secretas. Nas “democracias”
liberais a espionagem é feita pelas redes sociais e outros mecanismos de
filmagem (voluntárias e involuntárias), a perseguição ocorre por meio de
“degolas burocráticas”, cancelamentos, demissões, “nomes sujos”, fichas
policiais, etc.
Existem distintos níveis de censura e ditadura nas “democracias
liberais”, todos escondidos pela ideologia de livre mercado.
Em primeiro lugar, é a falta de dinheiro para a maioria esmagadora das
pessoas, que dificulta ou mesmo impossibilita qualquer ação ou divulgação de
ideias e críticas independentes. Depois é a demissão, que aparenta
individualizar o problema ou despersonalizar uma perseguição. Por fim, temos as
bolhas das redes sociais, onde falamos para nós mesmos e para o seleto grupo de
pessoas que pensa como nós.
Quando tudo isso não é suficiente para abafar, padronizar e controlar o
pensamento diferente e o descontentamento dos debaixo, explodindo, apesar de
todos estes mecanismos informais de controle um movimento de massas, sobrevêm,
então, os golpes de estado e a repressão militar e policial direta.
VI - Uma ideologia que funciona… desde que se tenha dinheiro!
Para além dessa
condescendência suspeita com a “vida noturna”, as taras e as incoerências
humanas de cada um de nós, o liberalismo e o “livre mercado” vendem a ideia de
que defendem e propagam uma liberdade individual absoluta. Só não podem
acrescentar que para que ela seja verdadeira e não apenas um discurso sedutor,
é preciso ter dinheiro.
Por exemplo:
Eu posso expor minhas
ideias e artes nas redes sociais, plataformas e publicar jornais para
divulgá-las atingindo um bom número de pessoas, desde que tenha dinheiro.
Também cabe perguntar se as ideias são realmente minhas ou se são influência de
uma indústria cultural e de meios de comunicação muito mais poderosos do que
eu.
Tenho “direito de ir
e vir”, sair por aí, pela cidade, pelo país e pelo mundo, desde que tenha
dinheiro. Posso comprar carros, casas e eletroeletrônicos novos, desde que
tenha dinheiro. Posso até mesmo mandar meu patrão à merda, desde que tenha uma
soma de dinheiro que me mantenha ou, então, um outro emprego em vista que me
submeterá a um novo patrão.
Mesmo que nunca se
concretizem — e a maioria desses “sonhos” nunca se concretizam! —, tais planos
existem como possibilidades reais na cabeça de quem compra a ideologia. É a
velha cenoura amarrada na testa do burrico para que ele ande infinitamente sem
reclamar e nunca a abocanhe!
VII - A meritocracia como a “cenoura inatingível”
O Brasil nunca teve
uma elite com o propósito de desenvolver uma filosofia e cosmogênese próprias
que encarnassem o “espírito” do desenvolvimento nacional de forma autônoma e
corajosa.
Ao contrário.
Sua “tradição espiritual” e visão de mundo é uma simples reprodução dos
valores ocidentais europeus e estadunidenses — como, por exemplo, a ideologia
do “livre mercado”, dentre outras — para tentar se integrar no mercado mundial
e conseguir vender o país para enriquecimento de poucos. Esta “tradição
espiritual” e visão de mundo transforma-se em tipos particulares de mentalidade
e psicologia social nas massas, que tomam como suas. Daí advém a sua “esperança
infinita” de que “a vida vai melhorar”. Só que ela nunca melhora. A ideologia
de livre mercado esconde uma mentalidade colonial e uma das maiores
desigualdades sociais do mundo.
A meritocracia é uma
forma de disfarçar ideologicamente a exploração, a roubalheira e a violência
simbólica e real da classe dominante com um discurso supostamente “justo”. O
povo brasileiro comprou a meritocracia a partir do discurso de
empreendedorismo, mas sem levar em consideração que para empreender é
necessário ter um mercado regulamentado que atenda o básico de serviços,
infraestrutura urbana, rural, logística e, sobretudo, social, além de uma
política financeira de empréstimos a juros baixo que possibilite o empreendedor
empreender.
O empreendedorismo e a meritocracia vendidos pela mídia e pela classe
dominante brasileira não passam de uma ideologia para mistificar a realidade e
jogar uns contra os outros, culpando o pobre pela pobreza e justificando as
imorais fortunas dos bilionários. Triste é constatar o fato de que o povo
compre-a tão facilmente, mesmo com tantas contradições na realidade sendo
visíveis a olho nu.
Isso não quer dizer que ter mérito e qualidade no trabalho não seja
importante — incluso em uma sociedade socialista —, mas isso nada tem nada a
ver com uma ideologia que serve para justificar e mistificar a realidade
brasileira e as suas gritantes desigualdades.
VIII - Devemos admitir que o povo pobre foi seduzido pela ideologia de
livre mercado e a abraçou quase voluntariamente!
A nossa principal tarefa ideológica deveria ser emancipar o pensamento
do povo do domínio do liberalismo dogmático (isto é: da ideologia do livre
mercado). Porém, para termos alguma chance de mudar essa realidade e,
consequentemente, a maneira de pensar da maioria do povo, temos que ter a
coragem de olhá-la de frente e, a partir daí, propormos tarefas realizáveis e
sensatas.
Devemos reconhecer que uma parte considerável do povo brasileiro quer
acreditar na ideologia de livre mercado em função desta junção confusa de
conceitos, preconceitos e práticas. O povo foi seduzido por décadas de
doutrinação liberal e anti-comunista, beirando até mesmo a paranóia, o que
demonstra a força das auto verdades irracionais, sempre utilizadas pelos
ideólogos da burguesia contra o próprio povo.
As elites nacionais e as suas mídias sabem bem os pontos nevrálgicos
onde há propensões egotistas humanas prontas a serem manipuladas para seduzir,
ludibriar e conquistar egos frágeis. Sabe seduzi-los com promessas demagógicas
de riqueza e poder, que é um dos cernes fundamentais da ideologia do livre
mercado — e o pior: sabe que o povo tem se vendido facilmente! Assim, uma
grande parcela da população age contra os seus próprios interesses, sendo um
resultado direto da manipulação da psicologia de massas.
A ideologia de livre mercado se forjou e se consolidou na condução e
manipulação do egoísmo humano presente em cada um de nós. Sabe onde apertar e
onde aliviar.
A “esquerda”, os movimentos sociais, sindicatos e partidos operários não
têm sabido combatê-la. Ao contrário, têm se rendido às maiorias da sociedade
civil e da opinião pública por medo da impopularidade momentânea, julgando,
erroneamente, que para combater a ideologia de livre mercado basta ser o mais
racional entre os racionais; o detentor das mais sábias e perfeitas análises
econômicas entre os economistas e militantes; porém, não entende nada de
ansiedade, vazio existencial e sequer está apta a ouvir um trabalhador
sinceramente, com toda a sua presença e todo o seu coração. Ou seja, ignora
orgulhosa e estupidamente a psicologia de massas.
Pensa que o
racionalismo iluminista é suficiente para enfrentar a manipulação liberal e que
as infindáveis carências sociais e econômicas — vulgo, estômago vazio — geram
automaticamente consciência auto-reflexiva e organizativa, sem que haja um
enfrentamento e contra-debate dentro do terreno explorado e dominado pelo
inimigo, que é a psicologia de massas, o vazio existencial, o sentimento
numinoso preenchido pelas religiões organizadas, etc; não dá o exemplo a partir
da própria pele, seja na escuta autêntica, seja na reformulação radical dos
métodos de organização, de debate, de trabalho de base, de sensibilidade
militante, etc. Faz tudo igual, sem criatividade alguma… e ainda espera
resultados diferentes!
Como é estreita uma
visão política e econômica que não entende e enfrenta os mecanismos
subterrâneos das paixões humanas. Como é triste e inglória uma luta que ignora
as ansiedades da alma humana e pensa de forma positivista, achando que o mero
discurso racionalista e científico é capaz, por si mesmo, de triunfar sobre o
discurso irracional e a manipulação da burguesia e da sua direita neofascista.
A desconfiança da
política e dos políticos não tem sido atribuída pelo povo ao capitalismo, ao
liberalismo e ao livre mercado. Eles são vistos e sentidos como forças
supostamente neutras e até mesmo benéficas. A culpa é sempre estritamente dos
políticos e da política (e… dos comunistas, que nunca estiveram no poder no
Brasil!). A criticidade não tem avançado, não assumindo valores socialistas e
humanistas, nem na visão política geral, nem nas relações pessoais cotidianas.
É a força da ideologia que faz isso, justamente porque ganhou o coração e a
mente do povo e passou a ser parte dele, da sua visão de mundo e dos seus
valores.
Nada do que a
esquerda nos seus mais diferentes espectros tem feito arranha essas ilusões que
cobram um preço duríssimo para as condições de vida da maioria da população. É
o principal trunfo da burguesia na manutenção do sistema.
Grande parte da
manipulação da psicologia de massas do neofascismo diz respeito às dicotomias
entre segurança material X independência real; dignidade democrática X
bem-estar; orgulho X prosperidade. Quando nos lançamos em uma luta política,
sindical e revolucionária, colocamos em jogo o nosso bem-estar material, pois
nos enfrentamos com a perseguição em distintos níveis, podendo ser retaliado,
demitido ou morto.
Geralmente a classe
trabalhadora passa pelas mais insidiosas necessidades materiais. A indústria
cultural e a sua propaganda conseguiram inverter a lógica, a narrativa e as
carências materiais criadas pelo capitalismo a seu favor. Além disso, as noções
egóicas construídas por séculos de pregação judaico-cristã, mais a propaganda,
as marcas, a sedução da fama e enriquecimento fáceis que são para poucos, mas
que servem como a cenoura amarrada por uma vara de pescar no lombo do burrico,
trabalha para que os proletários temam perder a segurança que eles não têm e a
possível prosperidade que eles almejam ter um dia — e provavelmente nunca
terão.
Por enquanto, a propaganda capitalista venceu a comunista a partir da
sedução da psicologia de massas por inúmeras promessas egocentradas de riquezas
e poder, as quais as organizações comunistas e de “esquerda” não sabem fazer
frente.
Tudo isso nos deveria
forçar a tirar novas conclusões e a repensar tudo! Porém, quanto mais
dogmaticamente auto afirmações de guetos são gritadas, tão mais inócuas se
tornam e mais fracos nos tornamos para enfrentar as ideologias burguesas, que
acabam tendo mais força e adesão por parte da massa trabalhadora.
Talvez estas sejam algumas das razões pelas quais a
ideologia do livre mercado têm sido amplamente hegemônica na sociedade civil e
na mente e no coração de milhões de trabalhadores. Se, erroneamente, achamos
que já temos a resposta, continuaremos a gritar as mesmas coisas de sempre.
Reconhecer o problema, bem como as nossas insuficiências teóricas e práticas, é
o primeiro passo para tentar acordar o povo.
Não é só no templo de Jerusalém que habitam vendilhões.
No Brasil, eles se consolidaram no poder, criaram uma estrutura social,
política e econômica que impossibilita o surgimento de qualquer Jesus com força
para expulsá-los do templo! Senão que eles próprios vendem o país inteiro “em
nome de Jesus”.
O Brasil nunca teve
uma elite com o propósito de desenvolver uma filosofia e cosmogênese próprias
que encarnassem o “espírito” do desenvolvimento nacional de forma autônoma e
corajosa. Ao contrário. Sua “tradição espiritual” e visão de mundo é reproduzir
os valores ocidentais europeus e estadunidenses — como, por exemplo, a
ideologia do “livre mercado” — para tentar se integrar no mercado mundial e
vender o país. Esta “tradição espiritual” e visão de mundo transforma-se em
tipos particulares de mentalidade e psicologia social nas massas, que tomam
como se fossem suas, embora nada influem e só sofram.
Os vendilhões do Brasil criam teorias,
ideologias, signos e narrativas diariamente para continuarem vendendo o país,
pois daí vem o seu lucro e o seu modo de vida dominante. Menosprezam o povo e,
indiretamente, o próprio país — sua cultura, seus costumes, dificuldades,
sofrimentos, história, etc.
Podemos nomear os
principais vendilhões do país: a grande mídia (que controla a narrativa através
do seu noticiário econômico diário); FEBRABAN (que controla a farra dos juros e
do sistema financeiro); FIESP (que mantém o poder econômico centrado em São
Paulo e numa indústria esquálida, voltada a glorificar o agro, se contentando
com a condição subalterna no mercado mundial de produtos primários); o
agronegócio (que manda e desmanda no país, controlando terras, desmatando,
assassinando índios e quaisquer opositores Brasil afora, desde a época
colonial, só mudando de produto de exportação ao longo do tempo); os políticos
da direita e da extrema direita — em especial os bolsonaristas, que encarnam o
espírito da entrega colonial — que sempre governaram o Brasil em nome deste
projeto de o vender ao imperialismo à preço de banana; e, por fim, a esquerda
reformista e conciliadora, que faz aliança com todos os vendilhões em nome de
uma governabilidade que, em última análise, ajuda a manter toda a estrutura de
dependência e semicolonialismo, além de burocratizar e paralisar o movimento sindical.
Um país soberano, na
prática, não deve tolerar que os interesses econômicos — sobretudo os
estrangeiros — ditem seus imperativos para a esfera política e econômica.
Isso, no entanto, é justamente o que ocorre no Brasil e na América
Latina: os interesses econômicos da cúpula do mercado mundial ditam o que é
certo e errado, a mídia comercial reproduz à exaustão e os vendilhões — que
lucram milhões com essa submissão — obrigam os seus políticos de estimação à
traduzirem tudo isso em sua prática política.
Vejamos um exemplo:
O projeto de
“modernização” do corredor ferroviário que liga a Bahia e o Acre ao Peru,
proposto pelos chineses, não tem nada a ver com uma integração nacional e
latino-americana, mas tem como objetivo central facilitar o escoamento da soja
e da carne do agronegócio para a China. Não há, portanto, nenhuma grande
preocupação com o desenvolvimento econômico que redunde num bem-estar social do
povo, mas apenas no atendimento das demandas do agronegócio, que nos remetem
aos tristes tempos do colonialismo português, quando se produzia pau-Brasil,
açúcar, ouro e café.
O Brasil foi fundado sobre esses interesses: primeiro foram as feitorias
e fortalezas portuguesas no litoral; depois foram as ferrovias de capital
inglês; no século XX foram as rodovias, montadoras e petroleiras ianques. No
século XXI é o agronegócio e a sua exportação para a China, embora sobrevivam
muitos vendilhões ligados ao imperialismo estadunidense em distintas esferas.
Os vendilhões
possuem muita grana, o que possibilita financiar jornalistas, escritores e
publicitários nas mais distintas esferas para propagandear os seus interesses individuais
e mesquinhos como sendo o mesmo que o desenvolvimento nacional. No entanto, são
justamente estes mesmos interesses que mantém o povo vegetando na miséria, no
desemprego e numa economia que lhe é estéril, porque não se preocupam e nem
querem projeto de país diferente dessa estrutura econômica.
Trata-se, portanto,
da manutenção do Brasil como um país semicolonial, enquanto vendem a imagem de
único “desenvolvimento” possível. Os vendilhões se adaptam rapidinho aos “novos
tempos”: antes Portugal, Inglaterra e EUA; hoje a China!
A briga, portanto, se
dá entre os vendilhões que querem dar de bandeja o país ao imperialismo dos
EUA, que não aceita perder seu trono, caluniando, sabotando, dando golpes e
matando; ou para aqueles que querem começar a negociar a venda do país em
condições um pouquinho melhores para a China.
Até quando o povo brasileiro tolerará esse tipo de conduta?
Que soberania é essa, então?
***
As tarifas de Donald Trump contra o Brasil parecem acender uma brasa nacionalista em parte do povo brasileiro e, em especial, na militância petista. De fato, as declarações e posições de Lula foram importantes, há muito tempo não vistas por um presidente brasileiro. Tais declarações jamais seriam dadas pelo bolsonarismo em seu "patriotismo" que é tão vira-lata que se orgulha de ter “conquistado” tarifas estrangeiras contra o seu próprio país.
No entanto, apesar das declarações, é importante ponderar que ainda estamos muito longe de uma soberania real. Declarações sem ações concretas são palavras que o vento pode levar. Há toda uma estrutura política e econômica que deixa o Brasil subordinado aos imperialismos e, em especial, ao estadunidense.
Ao que tudo indica, não é apenas a Rede Globo que sustenta que “o agro é
tech, o agro é pop, o agro é tudo!”.
Num post da internet
que coloca o seguinte questionamento: “qual o maior inimigo de classe no
Brasil?”, o profeta do “socialismo chinês”, Elias Jabbour, sustenta o seguinte:
“O agronegócio não é
meu inimigo principal de classe. O meu inimigo de classe é o capital
financeiro”.
E ele nem cora de
vergonha!
Como sabemos, o
agronegócio é o principal exportador de soja e carne para a China. Ele está
totalmente interconectado com o capital financeiro. O sistema financeiro e o
agronegócio são os principais beneficiários e patrocinadores da atual situação
econômica semicolonial do nosso país. Para Jabbour, no entanto, o Brasil só
pode se desenvolver se estiver colado à China, independentemente de que papel
cumpra nessa relação.
Se é certo que se
deve observar atentamente a relação Brasil-China não só a partir do agronegócio,
mas dos BRICS e da geopolítica mundial, certamente não se deve embelezá-lo
perante o povo, uma vez que um dos principais expoentes da chamada “elite do
atraso” é, justamente, o agronegócio.
É o agronegócio a
continuação das típicas relações coloniais do Brasil que escravizaram o seu
próprio povo para enriquecer metrópoles estrangeiras. Todo o projeto de
“modernização” e “infraestrutura” proposto pela China e apoiado
entusiasticamente por empresários do setor, políticos de direita e “esquerda”,
e militantes como o próprio Jabbour, visam escoar a sua produção ao exterior em
detrimento de uma industrialização que atenda aos reais interesses e anseios do
povo brasileiro.
É o agronegócio que
mantém posturas extremamente autoritárias na política, no campo, nas
legislações. Não há diálogo quando seus interesses são questionados. Sua
postura não é só totalitária, é colonial! Nos remete aos tempos portugueses do
açúcar, do ouro e do café. Quem lhe questiona é esquartejado, simbólica ou
fisicamente.
Por isso a linha
política de Jabbour mais parece a busca por uma nova metrópole — com um
discurso arrojado, atraente e “igualitário”, mas, ainda assim, uma metrópole! —
do que uma emancipação política e econômica do Brasil.
Certamente o projeto de subordinação aos EUA que vigorou até hoje não é
melhor, senão que é mais predatório e violento, tanto no discurso, quanto na
prática. No entanto, não são os chineses que devem dizer como tem que ser a nossa
industrialização e o nosso desenvolvimento econômico; nem nós deveríamos
esperar por isso.
O governo Lula anuncia investimentos da China no Brasil. Parte da militância petista já prega a aurora de um novo tempo: “a visita de Lula à China consolida a cooperação em setores estratégicos e reforça o papel do Brasil na construção de uma ordem multipolar” (para ler clique aqui).
A euforia destes
anúncios não pode esconder a realidade para olhares mais atentos: os 27 bilhões
de reais não significam mudança real para o povo, porque esses investimentos
são efêmeros para quem depende do próprio trabalho para viver. Eles visam, no
geral, apenas o enriquecimento empresarial — e, mais especificamente, o
agronegócio —, que reverterá todo esse dinheiro para si mesmo em um mercado
interno e um sistema financeiro totalmente desregulamentados, que não atendem
as necessidades do povo para um desenvolvimento equilibrado do país.
Além disso, no Brasil
nunca se pode descartar um novo golpe de Estado patrocinado pelos EUA, que
estanque esses investimentos e criem uma cunha nas relações com a China e os
BRICS. Portanto, não podem esconder com palavras que o papel do Brasil na
construção de um mundo multipolar não está assegurado de forma alguma, quanto
mais consolidado.
O governo Lula e o
petismo vendem a ideia de que a partir da busca de investimentos no exterior,
“criação de empregos” e do crescimento de áreas da economia nacional, sem um
planejamento integrado, coerente e contínuo, é possível desenvolver o país e
assegurar uma vida justa ao povo.
Não.
Nada pode substituir
o enfrentamento aos setores que sugam a riqueza do país e as enviam para o
exterior, deixando-o sem o menor controle sobre a própria economia.
Enquanto Lula anuncia esses investimentos chineses, a política nacional
continua controlada pela velha elite agroexportadora — que possui uma bancada
muito bem organizada e militarizada no Congresso Nacional, intimidando e
perseguindo opositores —, além do sistema financeiro e dos banqueiros, que
asseguram aos capitalistas estrangeiros o monopólio e o controle sobre o
país.
Sendo assim, estes investimentos não podem se reverter em uma realidade
melhor para o país, mas em algo passageiro, que não pode deter a
crise política e os inevitáveis impasses do final dos mandatos petistas,
pautados na conciliação de classes.
O Brasil e os BRICS
Há quem veja nos
BRICS e, em particular, na relação do Brasil com a China, a redenção do nosso
país de sua condição de neocolônia.
No entanto, somente
os governos petistas apostam nos BRICS — e ainda sim de forma muito limitada. O
bolsonarismo já anunciou que tiraria o país do bloco caso voltasse ao poder.
Aliás, até podemos concluir que a criação do movimento bolsonarista no Brasil
pelos EUA tem esta finalidade central.
Mesmo assim, o
petismo — sob o governo lulista — não vai além de “uma busca de investimentos”
na China quando trata dos BRICS. Age, portanto, moderadamente para não causar
atritos externos com os EUA; e internos, com as forças políticas e as
hegemonias sociais que agem em nome do imperialismo ianque. Fala em soberania
nacional, critica os tarifaços de Trump, busca fóruns e inúmeras cúpulas
estéreis para a integração latino-americana, mas teme à morte a desdolarização
e o enfrentamento com o imperialismo.
A atual presidência
brasileira dos BRICS tem agido mais como uma força “neutra”, diretamente
pró-EUA, do que como um ator soberano e independente, interessado em fortalecer
e consolidar o suposto “mundo multipolar”.
Os sites “The Saker”
e “Global South” tem criticado duramente a presidência brasileira dos BRICS,
principalmente após a reunião de ministros do exterior, ocorridas em 28 e 29 de abril, no Rio de Janeiro: “Brasil tenta impedir o avanço dos BRICS”
(para ler, clique aqui).
Isso não acontece por
acaso: o governo Lula e o petismo não lutam por criar uma nova correlação de
forças internas. Como, então, poderá orientar a sua presidência do bloco a
criar uma nova correlação de forças internacionais?
O petismo
provavelmente deixará o país à mercê de novos golpes da direita, porque seu
projeto não avança para além do velho programa liberal de esquerda, com um
sindicalismo burocrático e carreirista, limitado pela estratégia eleitoral —
que dá maiorias à direita nas instituições políticas e sociais. Além do mais, o
petismo não combate coerentemente a hegemonia da ideologia de livre mercado e a
mentalidade meritocrática da maior parte da população, senão que as reforça.
Os limites dos BRICS e os limites do Brasil dentro do bloco
Este blog já analisou
os limites dos BRICS (para ler, clique aqui), que, como sabemos,
é liderado por China e Rússia.
A multipolaridade
proposta por estes países poderá substituir com êxito a hegemonia estadunidense
ou apenas criará uma outra “hegemonia multipolar”, com uns poucos “polos” a
mais e uma grande periferia com pequenas elites econômicas dominantes sobre uma
maioria de pessoas exploradas? Isto é: conseguirá criar um mundo melhor do que
o existente ou apenas novas formas de dominação, mais refinadas e sutis? Tal
mundo multipolar conseguirá reintroduzir valores humanos e socialistas na
economia e na sociedade ou apenas modificará e refinará as formas de
capitalismo?
Além destas
contradições intrínsecas ao bloco, existem as contradições próprias do Brasil
que correspondem às suas limitações geopolíticas na arena internacional e do
petismo como condutor deste processo, que permanece prisioneiro da hegemonia
estadunidense, pois constrói suas críticas sobre postulados como “democracia”,
“liberdade”, “igualdade”, “direitos humanos”, “respeito às leis de mercado”
[monopolizado] etc., o que revela uma visão centrada no Ocidente como valor
universal — ou seja, está enredado nas pautas e agendas cínicas dos EUA e dos
seus agentes nacionais.
Em síntese, o governo brasileiro atua como uma espécie de cavalo de Tróia dentro do bloco, agindo de forma contrária a tudo o que esperam os governos de China e Rússia e, em especial, dos teóricos do chamado mundo multipolar. Sem enfrentar a elite brasileira frente a frente, repensando o país, sua economia e instituições, não há como atuar de forma soberana dentro e fora dos BRICS.